quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

O MÉTODO TEOLÓGICO DO ESCOLASTICISMO PROTESTANTE EM FRANCIS TURRENTIN


INTRODUÇÃO
O meu propósito neste trabalho é o de falar sobre o método teológico do escolasticismo protestante na obra de Francis Turrentin. Para tal seguirei o seguinte roteiro: primeiro, uma análise sucinta do que foi o escolasticismos protestante. Em segundo lugar, uma apresentação do autor e sua obra. Na terceira parte procurarei analisar o seu método teológico nos prolegômenos da sua magnum opus “Institutes of Elenctic Theology”. E, por fim, tratarei de fazer uma aplicação prática à realidade intelectual que nos cerca.
Quais motivos apresento para que consideremos este assunto? Os motivos são os seguintes: primeiro, este estágio do desenvolvimento do pensamento cristão tem sido muito mal compreendido. Muitos associam o termo escolástico ao que de mais estéril, servilmente filosófico e nada prático foi escrito na história da teologia. Veremos que isto é uma inverdade e que uma coisa foi o escolasticismo medieval e outra o protestante. Em segundo lugar, além de serem interpretados incorretamente sua relevância histórica tem sido desprezada por muitos. Esta gente esteve engajada no processo de clarificar o pensamento da Reforma e defendê-lo dos ataques romanistas. Sua influência não pode ser mensurada. Para tal basta mencionarmos a dívida que homens tais como Jonathan Edwards e Charle Hodge tinham em especial com Francis Turrentin. A influência deste grande teólogo do escolasticismo protestante em Princeton e consequentemente no presbiterianismo americano do passado é facilmente desmonstrável. Como afirma Mark A. Noll:
O uso Princetoniano dos dogmáticos reformados do século dezessete tem sido um tema especialmente sensível. Quando Alexander chegou à Princeton para começar a lecionar, ele procurou achar um texto teológico. Como seu biógrafo descreve: ‘Não achando nenhum trabalho em inglês que pudesse satisfazer amplamente suas demandas, ele colocou nas mãos dos seus pupilos as Institutas de Francis Turrentin. Ela era pesada, escolástica e numa língua morta [latim], mas ele acreditava que no processo de lutar com as dificuldades; ele havia sentido a influência desta razão atlética vigorosa em sua própria mente, e observara que aqueles que dominavam seus argumentos eram aptos para ser teólogos fortes e lógicos’. A Institutio Theologiae Elencticae de Turrentin (1679-1685) permaneceram o texto teológico do seminário até serem sibstituídas pela Teologia Sistemática de Hodge no ínicio de 1870.
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Em terceiro lugar, conhecer a teologia deste tempo conforme apresentada por Turrentin é conhecer um dos períodos mais gloriosos da história do pensamento cristão e que mais pode nos auxiliar neste tempos de desprezo pela teologia sistemática e morte da razão. Era uma época em que a Bíblia era tida como inspirada, a filosofia como serva da teologia, a verdade como proveniente de Deus e assim livre de contradições, o homem como chamado para prestar culto a Deus com sua razão, as doutrinas como merecedoras de serem bem definidas e logicamente interrrelacionadas e a glória de Deus como alvo supremo do conhecimento teológico. Como diz John H. Leith:

O termo escolasticismo, usualmente aplicado à teologia desse período, é difícil de ser definido. Tem suas raízes no escolasticismo medieval, mas qualquer forma de escolasticismo protestante é modificada pelas doutrinas protestantes sobre a autoridade das escrituras e a justificação pela fé. É suficiente aqui notar que o escolasticismo é um tipo de teologia que dá grande ênfase à precisão das definições e às afirmações lógicas, coerentes e consistentes. Representa um nível de teologia alto e técnico. Tais virtudes deram grande poder à teologia reformada escolástica. As teologias desse período são ainda hoje impressionantes e indispensáveis pelo seu rigor teológico.
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1. O ESCOLASTICISMO PROTESTANTE

O que foi o escolasticismo protestante? O escolasticismo protestante refere-se ao desenvolvimento teológico pós-reforma nas igrejas reformadas. Teve seu começo no final do século XVI seguindo o trabalho da segunda geração de codificadores da reforma, como Calvino, Heinrich Bullinger, Wolfgang Musculus, e Peter Martyr Vermigli e se extendendo para o século XVIII.
Seu trabalho foi fazer uma obra de sistematização dentro da fronteiras criadas pelas grandes confissões reformadas do século XVI. Para tal o método empregado foi o escolástico. O que isto significa? Richard Muller responde dizendo: “Ele é chamado de “escolástico” primeiramente por causa do método teológico que ele usou nas formulação dos seus sistemas de doutrina”.
3Muller prossegue lembrando-nos: “O escolasticismo do final do século XVI e século XVII foi auxiliado pelo aumento da abertura da teologia protestante para o uso da razão e filosofia, especificamente para o aristotelismo revisado do final da renascença”. 4E conclui destacando que não devemos confundir este escolasticismo com o medieval: “Admitindo o desenvolvimento em lógica, retórica e metafísica que tiveram lugar nos séculos XV e XVI, nem o método, nem a filosofia dos protestantes escolásticos foram idênticos aos dos pensadores medievais”. 5Certamente aí está a causa do preconceito de muitos que vieram a desconsiderar esta fase do pensamento reformado por causa das suas supostas ligações coma teologia especulativa e racionalista da idade média. Como nos trás à memória Arvin Vos: “O termo foi primeiro usado num sentido derrogatório pelos humanistas do século XVI. Ele é agora aplicado à qualquer teologia na qual preocupação com a lógica e o método são proeminentes, onde teologia é concebida em termos de ciência”. 6
Sua influência durou duzentos anos. Por este simples fato já se torna algo digno da nossa atenção. Mas, não apenas isto. Podemos avaliar sua importância quando pensamos na obra magistral destes teólogos que se viram diante do desafio de apresentar de forma bíblica, racional e sistematizada o pensamento protestante em face dos ataques bem articulados da teologia católica romana. Esta seria, na divisão de Muller a primeira fase desta vertente teológica do protestantismo, que duraria de 1565 até 1640. Em 1545 através do Papa Paulo III, a Reforma foi respondida e condenada, como nos lembra Muller, pelas melhores mente teológicas da Igreja Católica Romana. Entre estas mentes a do Cardeal Roberto Belarmino: “No curso desta polêmica, o Protestantismo desenvolveu uma síntese mais detalhada da sua própria posição teológica”. 7 Comenta Muller:
Esta fase seria caracterizada ainda por mais três fatores: a necessidade da terceira geração de líderes protestantes de declarar para si mesmos o significado da Reforma, o interesse entre os sucessores dos reformadores em manter e enfatizar a catolicidade da Reforma à luz da tradiçào cristã e a tentativa de formular os sistema teológico do protestantismo em larga escala, além do oferecido pela segunda geração de reformadores, com a reintrodução de categorias filosóficas.
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Não foi coisa de somenos importância o que esta gente realizou. O debate era intenso, do lado católico posições muito bem defendidas tendo ao seu lado o peso da tradição, o que podia levar muitos a pensar que não era possível que a igreja estivesse errada por tantos anos conforme os Reformadores haviam denunciado. Richard Muller define a teologia deste período como “aberta por uma lado para a tradição medieval como seu uso da filosofia Aristotélica, mas do outro lado consciente do mandato da Reforma de não admitir nenhuma norma para a doutrina igual ou maior do que a Escritura”.
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A segunda fase apresentada por Muller é a que se extende de 1640 até 1700, entitulada de era da alta ortodoxia, que veio a ser a grande era do sistema teológico. Foi uma era de considerável atividade intelectual nos campos da teologia, estudo linguistico, e exegêse. Foi a era do debate sobre o federalismo de Cocceious, que veio a se tornar tão característico do pensamento reformado posterior onde a relação de Deus com os homens é vista sempre em termos pactuais e Adão sendo apresentado como o representante da humanidade no pacto das obras e Cristo, o segundo Adão como o representante da igreja no pacto da graça. Neste mesmo período questões teológicas altamente técnicas foram tratadas. Especialmente pela escola de Saumur. Não foi fácil manter a continuidade teológica com a Reforma enquanto também formulava um sistema teológico amplo numa era de método escolástico e revoluções no campo da ciência e da filosofia. O que de mais importante aconteceu neste período no campo teológico em geral foi a perda da tradicional síntese Aristotélica de teologia, filosofia e ciência. Falando um pouco mais sobre o ethos intelectual Richard Muller diz:
A ortodoxia começou a sentir o impacto do racionalismo cartesiano e, na Inglaterra, da teologia natural do incipiente Deísmo. No final desta era, os sistemas racionalistas de Espinoza, Leibniz e Locke manifestaram ainda mais claramente a mudança no clima filosófico.
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A fase final, na boa divisão histórica de Muller vai de 1700 até 1790, que poderia ser chamada de ortodoxia e racionalismo tardio. Aqui tem-se início o declínio e estagnação do escolasticismos protestante. Fora o impacto do ambiente intelectual o escolasticismo protestante foi transformado pelas forças do Pietismo, indiferentismo doutrinário e racionalismo. O Pietismo com sua ênfase na dimensão prática do cristianismo, o indiferentismo doutrinário subproduto de uma exaustão de debates teológicos sem fim em torno de minudências. O escolasticismo Protestante de Aristotélico tornou-se Cartesiano, para mais adiante ser esmagado pela crítica de Kant à metafísica racionalista. A razão não deveria ser vista como ponto de partida para a teologia. Porém, tal não ocorreu sem antes os ataques racionalistas serem feitos aos pressupostos sobrenaturalistas do escolasticismo Protestante. Hoje, embora ainda que não completamente eliminado, o escolasticismo Protestante com todos os seus pressupostos ocupa espaço bem reduzido numa área onde reinam crenças fideísticas, admite-se contradições teológicas e não se espera mais um campo unificado de saber.
Porém, uma marca indelével foi deixada por esta fase da teologia Protestante na história do pensamento cristão. Mais uma vez é Richard Muller quem nos fala sobre a importância deste estágio da teologia Protestante:
O que a Reforma começou em menos da metade de um século, o Protestantismo ortodoxo defendeu, calarificou e codificou no curso de mais de um século e meio. A Reforma é incompleta sem suas codificações dotrinárias e confessionais. E mais, o Protestantismo não poderia ter sobrevivido se não tivesse desenvolvido, na era da ortodoxia, um corpo de doutrina normativo e defensível consistindo de um fundamento confessional e elaboração sistemática.
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Quais eram as grandes características desta teologia? Alistar E. MacGrath nos afirma que trava-se de uma teologia carcterizada pela presença de quatro pressupostos:
1 À razão humana foi designada uma maior função na exploração e defesa da teologia cristã.
2 A teologia cristã foi apresentada como um sistema logicamente coerente e racionalmente defensável, derivado de deduções silogísticas baseada em axiomas conhecidos.
3 A teologia foi compreendida como estando sob a filosofia Aristotélica [sic], e particularmente percepeções Aristotélicas da natureza do método.
4 A teologia se tornou orientada para questões metafísicas e especulativas., especialmente o que se relacionava a natureza de Deus, a vontade de Deus para a humanidade e a criação, e acima de tudo a doutrina da predestinação.
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Este foi o sistema teológico adotado homens tais como (para falar dos mais conhecidos), William Ames, Peter van Mastrich, John Owen e que exerceu enorme influência sobre alguns da chamada escola de Old Princeton, como Charles Hodge e Archibald Alexander Hodge. Mas, para nosso propósito estaremos à partir de agora analisando a vida do maior teólogo sistemático do período: Francis Turrentin.

2. FRANCIS TURRENTIN

Francis Turrentin (1623-1687); professor de teologia italiano, estudou em Genebra, Leiden, Utrecht, Paris, Samur, Montauban, e Nimes. Ele foi chamado para ser pastor de uma congregação italiana em Genebra em 1648 e foi designado professor de teologia na universidade em 1653. Seu maior trabalho teológico é a Institutio Theologiae Elencticae. Wayne Grudem lembra que sua obra é tida como uma das mais completas expressões de teologia calvinista jamais publicadas e que foi usada, conforme citado supra, como livro texto de teologia dos Presbiterianos dos EUA, principalmente por Charles Hodge em Princeton.
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Olivier Fatio ao falar sobre os três volumes, publicados em 1679 da Institutio Theologiae Elenticae, o chama de “uma trabalho da ortodoxia Calvinista monumental por sua estrutura e clareza”. 14Segundo Justo Gonzales “foi provavelmente o mais importante teólogo sistemático do Calvinismo ortodoxo do continente”. 15Sobre sua Institutio afirma: “Estas são provavelmente o mais sistemático e amplo tratado sobre teologia doutrinária no campo da Reforma depois das Institutas de Calvino”. 16James Boice lamentou o quanto esta obra tem sido negligenciada por muitos. 17Para John Gestner “a melhor comida espiritual para os famintos filhos de Deus”. 18O próprio Gestner lembra-nos citando Ramsey que Jonathan Edwards foi demonstravelmente dependente dos escritos de Turrentin. Edwards o considerava em teologia polêmica excelente, como também nos debates acerca dos cinco pontos do Calvinismo e todos os outros pontos controversos da teologia. 19


3. O MÉTODO TEOLÓGICO DE FRANCIS TURRENTIN

Como o grande teólogo italiano fazia teologia? Qual era o seu método? Com base em que pressupostos escreveu sua grande obra? Uma simples análise da sua introdução deixa claro que de fato Turrentin era um homem do seu tempo e sua teologia consequentemente refletia este fato. Observaremos, porém, que a afirmação supra que pode assumir conotações pejorativas “ser um homem do seu tempo”, no seu caso pode ser vista como um elogio, pois no seu tempo fazer teologia como o apóstolo Paulo fazia era visto como algo fundamental.

3.1. Definindo o Sentido da Palavra Teologia

A princípio percebemos que não havia problema para ele em os teólogos reformados usarem aquilo que a graça comum havia compartilhado com os não crentes. Ele reconhecia que a própria palavra teologia tinha origem grega e que foi transferida das escolas dos gentios para o uso sagrado, tal como os vasos do Egito foram apropriados para propósitos sagrados pelos Israelitas.
20Esta é uma constatação magnífica, pois muitos hoje em dia falam do quanto a teologia cristã está eivada do pensamento grego, esquecendo-se que o pensamento de Paulo estava eivado da cultura grega também e daquilo que havia de bom nela. A teologia do Protestantismo escolático não via problema em se apossar dos tesouros da graça comum, mesmo os tesouros teológicos. Não apenas isto, Turrentin insere sua teologia dentro do contexto da ampla tradição do pensamento cristão e por isto sente-se livre para na usa própria definição de teologia citar Tomás de Aquino: “Teologia é ensinada por Deus, ensina Deus e leva para Ele”. 21Para Turrentin “Teologia é um sistema ou corpo de doutrina concernente a Deus e as coisas divinas reveladas por Ele e para a sua glória e salvação dos homens”. 22Veja que não há nada de especulativo aqui. A razão não é independente da revelação. E, em contraposição às acusações pietistas, tudo é muito prático: a glória de Deus e a salvação dos homens.

3.2. As Divisões da Teologia e sua Própria Existência

Nesta secção partindo de uma base não fideísta Turrentin vê o conhecimento teológico como fruto de cinco fatos: a natureza e a bondade de Deus, o desejo inato do coração do homem de conhecer a Deus, o propósito da criação que é adorarmos a Deus o que sem o conhecimento teológico é impossível, a natureza da coisa (Deus é conhecível e o homem é conhecedor), e por fim, a necessidade de salvação.
23Aqui vemos o destaque dado nesta teologia às convicções comuns da nossa raça que inserem-se dentro daquilo que o apóstolo Paulo chama na carta aos Romanos de conhecimento que o homem tem de Deus por força da sua criação. É curioso como nossa apologética mudou. Mudou para pior. Deixou de ser Bíblica. Não crê mais em teologia natural. Este erro o protestantismo escolástico não conheceu. Turrentin dividia a teologia em verdadeira e falsa. A falsa poderia ser tanto a dos gentios como a dos hereges. A verdadeira teologia poderia ser vista da perpectiva de Deus. Teologia infinita e não criada. Que nada mais é do que o conhecimento essencial que Deus tem de si mesmo. Quando vista da perspectiva do homem, teologia finita e criada. 24Esta teologia vem a ser o Deus que se conhece comunicando das mais diversas formas às suas criaturas racionais o conhecimento que tem de si mesmo.
A teologia da revelação era vista como dividida em duas partes. Teologia natural e sobrenatural. Há uma tríplice escola de Deus considerando esta dupla divisão: primeira, a da natureza, a segunda a da graça, e a terceira a da glória. Seriam três as partes da teologia: a natural, a sobrenatural e a beatífica. A primeira experimentada pelos homens pela luz da razão. A segunda, a dos crentes na igreja pela luz da fé. E a terceira, a dos santos no céu pela luz da glória.
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Por fim, Turrentin sustenta o conceito de um campo unificado de conhecimento. Ele recusa-se a aceitar contradição no saber. Não há verdade filosófica que não possa ser harmonizada a teológica. Razão é fé não são inimigas.

3.3. Teologia Natural
Turrentin defende a teologia natural à partir de Romanos 2:14. Para ele trata-se de um conhecimento parcialmente inato e parcialmente adquirido. O primeiro derviado do livro da consciência e o segundo derivado do livro das criaturas. Uma das provas da existência desta espécie de conhecimento ele retira da experiência humana universal. Ele cita Cicero, que vem a dizer que não há nação tão bárbara na qual esta persuasão da deidade não descanse. E por fim lembra que para Platão, por causa de tudo o que podemos ver sobre o comportamento humano, o homem poderia ser considerado um animal religioso.
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Apesar deste conhecimento inato, o homem é capaz de negar a existência de Deus, embora não por ignorância, mas a fim de poder pecar mais livremente. Um outro ponto merece destaque. Tal como o pensamento reformado em geral este conhecimento natural não é suficiente para a salvação do pecador.
3.4. O Conhecimento Natural não é Suficiente para a Salvação
Turrentin não era universalista. Via toda religião que não se originava da Palavra de Deus como ímpia, falsa, idólatra e errônea. Embora visse a revelação natural como útil sob vários aspectos, como por exemplo, condição subjetiva no homem para a admissão da luz da graça porque Deus não apela para brutos e toras de madeira, mas para criaturas racionais, ele afirmava ser criminoso apontar um caminho de salvação fora de Cristo.
Para ele uma coisa é buscar o favor e graça de Deus revelada através de sua Palavra em virtude de suas promessas em Cristo. Outra é buscar um deus desconhecido nas obras da natureza e providência. Esta revelação é suficiente para nos tornar inescusáveis, mas não para nos salvar.
Outro elemento diferenciador é o conhecimento da misericórdia divina que advém de qualquer benefício temporal para aquele conhecimento da misericórdia através da satisfação feita por Cristo.
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3.5. O Objeto da Teologia
Todas as coisas que são discutidas em teologia ou têm relação com Deus em si mesmo ou têm uma relação com Ele como primeiro princípio e fim último. Quando se fala, porém em Deus como objeto da teologia esta se falando não simplesmente em como Ele é em si mesmo, tal é impossível por força da sua incompreensibilidade, mas na revelação que faz de si mesmo. E mais, teologia não é estudar a deidade, mas conhecê-lo como nosso Deus, com quem temos um pacto através de Cristo e isto desembocando em culto.
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3.6. Teologia Teórica ou Prática

Este é um outro ponto importante dos seus prolegômenos. Ele afirma: “Nós consideramos que a teologia não é simplesmente teórica nem simplesmente prática, mas parcialmente teórica, parcialmente prática, a qual ao mesmo tempo conecta a verdade teórica com a prática do bem. Turrentin não vê nada que tenha sido revelado como objeto da nossa contemplação pela fé que não tenha como propósito nos levar ao culto a Deus.
Em sua teologia não há divórcio entre doutrina e prática. O conhecimento de Deus não pode ser verdadeiro a não ser que desague na prática da verdade. Mas, a prática não pode ser correta e salvadora se não é dirigida pelo conhecimento. O fim da teologia é a felicidade do homem a qual consiste parcialmente na visão e parcialmente na fruição de Deus.
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3.7. O Papel da Razão na Fé Cristã

Certamente aqui recebemos uma das maiores contribuições do escolasticismo Protestante e, em especial de Turrentin. Isto porque vivemos numa era onde ainda há os que mantém os pés no racionalismo, como também os que negam qualquer papel para a razão na fé cristã como nas demais dimensões da vida.

Fica claro para Turrentin que é através da razão iluminada pela verdade que o pecador é trazido à fé. Certamente jamais um homem como Turrentin combateria o esforço apologético. Mas, ao mesmo tempo mostra-se radicalmente contrário a idéia de que a doutrina deve estar fundamentada na razão e que deve ser considerado falso aquilo que a luz natural da razão humana não consegue compreender. Turrentin era racional sem ser racionalista. Ele apresenta três argumentos quanto as pretensões racionalistas. Primeiro, que a razão do irregenerado é cega quanto a lei e ao evangelho. Segundo, que os mistérios da fé estão para além da esfera da razão. E, em terceiro lugar, a fé em última análise não tem referência com a razão, de um modo que só devemos crer porque entendemos. Cremos porque Deus fala nas Escrituras e o Espírito Santo no leva a ver isto.

A razão é o instrumento que o crente usa, mas não o fundamento ou princípio sobre o qual a fé repousa. Ele estabelece uma diferença entra as verdades axiomáticas que a Palavra de Deus nos apresenta e que são recebidas pela fé com base na autoridade de quem fala, e o que é verdadeiro na conclusão de um raciocínio que é aferido pela razão. Ele usa como exemplo a negação de que o corpo de Cristo possa estar neste momento em todo lugar. Sabemos pela fé que Cristo tem um corpo real, mas por inferência lógica sabemos que este corpo não pode estar em todo lugar ao mesmo tempo. Uma coisa é algo ser contrário a razão, outra coisa é algo estar acima da razão. Ele admite a possibilidade da verdade revelada de modo especial ser contrária ao pensamento de um homem, mas jamais a razão. Mais uma vez vemos a certeza implícita que toda verdade é verdade de Deus e que, portanto não pode haver verdades estanques que sejam impossíveis de se interrelacionarem.

Embora Turrentin não veja a razão como elemento determinador do que devemos e não devemos crer, dá a ela a função de num exame privado o crente distinguir a verdade da falsidade. Há uma declaração que merece destaque, pois aponta para algo crucial em todo diálogo apologético: “Embora o entendimento humano esteja bem obscurecido, ainda assim permanece nele alguns raios da luz natural e certos primeiros princípios, a verdade que é inquestionável: tal como, o todo é maior que sua parte, um efeito pressupõe uma causa, estar e não estar ao mesmo tempo são incompatíveis, etc. Se este não fosse o caso, não poderia haver ciência, arte, nenhuma certeza na natureza das coisas. Estes primeiros princípios são verdadeiros não apenas na natureza, mas também na graça e nos mistérios da fé. Fé, longe de destruí-los, pelo contrário empresta-os pela razão e usa-os para fortalecer suas próprias doutrinas. Embora razão e fé sejam de diferentes classes (uma é natural, a outra sobrenatural), elas não são de modo algum opostas, mas guardam um certa relação e são subordinadas a cada outra”. Imaginemos um homem pregando deste modo na nossa sociedade chamada de pós-moderna.

O mais interessante é o paragráfo em que Turrentin prova que assim funcionavam os homens acerca dos quais a Bíblia nos fala. Inclusive nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Estes homens apelavam para a razão em suas mensagens e criam no testemunho dos sentidos. Turrentin fala sobre a diferença entre o incompreensível e o inconcebível. O primeiro pertence a fé, mas não o segundo. A Bíblia não pede que creiamos naquilo em que nem Deus consegue harmonizar. Ou seja, o que é inerentemente absurdo.
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3.8. Filosofia versus Teologia
Este tópico é de fundamental importância tanto para desfazer um série de más interpretações desta fase do pensamento cristão quanto para que compreendamos o quanto a teologia do século XVII está distante do que tem sido ensinado nos últimos anos nas cátedras de teologia.

Turrentin aponta para dois erros fatais. Dois extremos que devem se evitados. O extremo de tornar a teologia serva da filosofia e o extremo de desprezar a filosofia por completo. Quanto ao primeiro ele reconhece que a igreja em fases distintas da sua história deixou-se dominar pela filosofia. Ele menciona alguns pais da igreja que por causa do basckground grego deixaram-se influenciar de modo desmedido pela filosofia. Ele condena os teólogos que dependeram mais dos raciocínios de Aristóteles do que dos profetas e apóstolos. Seu ponto de vista torna-se bastante claro quando analisamos a seguinte senteça: “A teologia governa sobre a filosofia, e esta atua como empregada para servir a primeira”.

Outra obsevação que fazemos nos seus prolegômenos é a de que Turrentin não era racionalista. Admitia o fato de que há verdades na Bíblia que estão para além da razão e que ela própria não pode demonstrar. Mesmo assim, partindo do pressuposto que toda verdade é verdade de Deus, não admitia a possibilidade de uma verdade contradizer a outra, quer esta verdade tenha sua origem nos uso dos sentidos, do intelecto ou da fé. Ele afirma: “A graça não destrói a natureza, mas torna-a perfeita”. E apresentando amplas bases bíblicas defende o uso apologético da filosofia e o seu valor para a própria teologia na medida em que aquela pode auxiliar a esta no processo de harmonização da verdade e no uso lógico das premissas bíblicas.
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4. UMA APLICAÇÃO DO MÉTODO TEOLÓGICO DE TURRENTIN À REALIDADE INTELECTUAL QUE NOS CERCA

Ser um Protestante escolastico não significava, conforme pudemos ver, estar absorto em questões teológicas irrelevantes, preocupar-se mais com teologia do que com a vida cristã ou adotar pressupostos racionalistas. Neste sentido não cabem as críticas de homens como A. C. McGiffert:
“Como em todo escolasticismo a importância de uma doutrina particular veio a depender de seu lugar no sistema teológico do que sua relação prática com a vida. A verdade foi ganha, não de uma experiência religiosa e moral do indivíduo ou da igreja, mas pela dedução lógica de um sistema aceito, e se ela foi testada pela sua consistência com o todo mais amplo”.
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MacGiffert descreve uma má teologia que não precisava ser necessariamente a teologia dos teólogos da geração que estamos tratando.Ora, as críticas de MacGiffert, são excelentes, mas que mais cabem ao trabalho teológico daqueles que fazem péssima teologia do que aqueles que não querem acreditar em contradições e não admitem colocar a teologia nem além nem aquém da razão. MacGiffert também condena o Aristotelismo deste sistema teológico.
33Cabe destacar que uma coisa é adotar o Aristotelismo outra coisa é ter certas convicções que vieram a ser chamadas de Aristotélicas. O Aristotelismo é a absolutização de Aristóteles. Isto é um erro. Nenhum sistema de pensamento pode ser absolutizado, a não ser que seja sancionado pela Palavra de Deus. Mas, ser Aristotélico, onde o grande pensador grego falou a verdade que veio a estar profundamente ligada à sua pessoa em razão da forma original como esta mesma verdade saiu de seus escritos, nada mais é do que o exercício de receber a verdade, por ser a verdade, quer ela venha da boca de um santo, de um não regenerado ou dos demônios.

É possível os que acusam os Protestatantes escolásticos de terem caído no pecado do Aristotelismo não usarem os princípios para um discurso lógico sistematizados pelo mesmo Aristóteles? Se ser lógico é ser Aristotélico todos os homens do Antigo(embora saibamos que Moisés é anterior a Aristóteles) e do Novo Testamento, inclusive o Senhor Jesus devem ser considerados como tais, pois embora cressem e ensinassem verdades supra-racionais recusavam-se a crer em contradições. Todo nosso ser clama por uma harmonia entre fé e razão. Fazer teologia com o propósito de evitar afirmações contraditórias é agir como agimos em todas as áreas do saber. É evitarmos uma pavorosa esquizofrenia, que divorcia a razão da vida espiritual. É agir como a Bíblia manda. Não vemos Deus nas Escrituras pedindo que Seu povo creia em absurdos. Talvez alguém venha contradizer este ponto de vista perguntando: A Trindade é racional? A união das naturezas divino e humana de Cristo faz sentido? Abraão viu base racional para sacrificar seu filho Isaque? A resposta irrefutável é que é racional quando após atestarmos a inspiração da Bíblia acreditarmos no que Deus falou através dela. Seria irracional negarmos a Trindade, a natureza divino-humana de Cristo quando racionalmente já fomos convencidos pelo Espírito Santo de que a Bíblia é a Palavra de Deus, tal como seria irracional para Abrão não sacrificar seu filho Isaque quando havia chegado à conclusão que Deus lhe falara claramente.

A proposta teológica do escolasticismo Protestante emerge da nossa natureza humana conforme criada por Deus. É impossível agir como homem e não chegar onde aquela gente chegou. Meu ser impele-me a querer harmonizar as diversas verdades das Escrituras Sagradas num todo que faça sentido. Sou levado por motivos constitucionais a ser lógico. Não consigo funcionar de outra forma. Como muito bem afirmou Gresham Machem:
A verdadeira religião não pode estar em paz com uma falsa filosofia mais do que com uma ciência que é facilmente chamada; algo não pode ser verdadeiro na religião e falso na filosofia e na ciência. Todos os métodos de se alcançar a verdade, se forem métodos válidos, chegarão a um resultado harmonioso.
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Fora tudo isto, olhemos para a Bíblia. Encontramos um Bultman, um Tillich ou um Barth nela? Como os personagens bíblicos funcionavam? Por que Abraão partiu para oferecer Isaque em sacrificio? Por que Gideão rumou para a guerra? Por que João registrou os milagres de Cristo no seu evangelho? Por que o apóstolo Paulo cria numa ressurreição final dos justos? Para os apóstolos o Antigo Testamento continha ou era a Palavra de Deus? Partindo para o campo do método teológico. Como o apóstolo Paulo fazia teologia? Por que o encontramos na carta aos Gálatas no capítulo 3 versículo 16 discutindo por causa da letra “s”? “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: E aos descendentes, como se falando de muitos, porém como de um só: e ao teu descendente, que é Cristo”.A carta aos Romanos é uma amontoado de afirmações desconexas, ou nela encontramos uma mente prodigiosa que procurava ensinar teologia de uma forma harmoniosa e que fizesse sentido para os seus leitores?

A maior prova que este período da história foi único foram os seus resultados históricos. Esta teologia gerou igrejas fortes e crentes sadios. O fato de haver perdido campo não muda o seu valor. O critério de aferição da verdade não é o grau de proximidade com o que se considera moderno. Não vivemos no sonhado mundo de Hegel onde de modo dialético rumamos paso à passo na direção da perfeição. A história tem seus retrocessos. E o que foi deixado para trás pode ser verdadeiro. Não está me dizendo nada a afirmação que depois de Kant este método teológico perdeu sua força. A questão que precisamos responder é outra: como as pessoas funcionavam na Bíblia? Podemos ver algo como a teologia liberal nas Sagradas Escrituras? Com que categorias aqueles homens de Deus pensavam? Eram contra formuilações doutrinárias precisas? Criam que era possível compatibilizar coisas diametralmente opostas a ponto de termos que chamá-las de contradições.

Não foi o escolasticismo Protestante que enfraqueceu de forma mortal as igrejas européias. É interessante observar que o liberalismo teológico em todas as suas vertentes é sempre um parasita na vida das grandes denominações, com um mundo de pastores levianos subescrevendo confissões de fé em que não crêem. Por que ele precisa de um corpo? Ora, porque não tem e não pode ter vida própria. Quero ver numa favela do Rio de Janeiro um sujeito começar seu ministério dizendo que está ali para pregar com base numa Bíblia repleta de erros. Por que essa gente não redige sua confissão de fé e apresenta claramente seus pontos de vista sobre a vida de Cristo e as Escrituras Sagradas? Porque sabe que não sobreviverá. Vai passar fome. A natureza humana repele este tipo de coisa. Se a preocupação destes teólogos do passado fosse mantida pela igreja a Europa com toda a sua genialidade continuaria até hoje abênçoando a humanidade com sua reflexão teológica e visão missionária.

CONCLUSÃO
Penso que acabamos de tomar consciência de uma era de ouro da história do pensamento cristão. Uma geração de teólogos soube responder aos desafios do seu tempo ampliando consideravelmente a herança teológica que receberam, sistematizando de forma racional o conjunto de doutrinas cristãs, defendendo a fé resgatada pelos reformadores do século XVI, definido hábil e fielmente as verdades bíblicas e usando o instrumental filosófico na medida em que o mesmo era sancionado pela constituição mental dos seres humanos e pelas Escrituras. E tudo isto com base na firme convicção de que a Bíblia é a Palavra de Deus.
Analisamos seu método teológico atravéz da obra do maior sistemático do século XVII, o italiano Francis Turrentin. Certamente precisa haver um resgate de sua obra em nosso meio. O debate com os católicos ainda continua. E não sabemos como será dentro de uns poucos anos quando definitivamente, quem sabe, o protestantismo brasileiro se tornará majoritário no Brasil. Será que estamos à altura dos que militam do lado católico? Será que saberemos responder aos de nossas próprias fileiras que ingenuamente propõe a união de ambas as igrejas?
Sabemos que os tempos mudaram. Hoje a epistemologia não é mais a mesma. A razão é vista com suspeição. Amplos sistemas de conhecimento filosófico são questionados. A nós nos cabe faze este resgate histórico formulando à partir desta herança fabulosa as respostas que a chamada sociedade pós-moderna carece de ouvir dos nossos lábios. Porém, vivemos ainda num país cuja população encontra-se imensa maior escala na pré-modernidade. E esta gente está aí para ser alcançada e discipulada por nós. Quanto a estes a pregação ipisis literisis do que foi pregado no século XVII ainda funciona.
Que o mesmo Deus nos ajude a de uma forma ou de outra aplicar ao contexto tão diversificado da sociedade brasileira o que estes gigantes ensinaram ao mundo após a morte dos reformadores iniciais.

BIBLIOGRAFIA

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4 idem, p.265
5 idem, p 265
6 idem, p 342
7 idem, p. 266
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21 idem P.2
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33 idem. P.145
34 MACHEN, Gresham Cristianismo e Liberalismo. São Paulo. Editora Os Puritanos, 2001. P.64

Um comentário:

Patrícia Vitalino disse...

Recebi agora a Helenística dele.
Estou abrindo para ler.
Abraço,
Samuel Vitalino
(Tiça é a minha esposa)

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